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Revista Casa Comum: Desafios para a participação política de migrantes no Brasil

Reportagem especial da Revista Casa Comum, do Sefras, aborda os desafios e barreiras para que pessoas estrangeiras residentes no Brasil possam participar e exercer direitos democráticos, como o voto. Em 2022, mais de 156 milhões de pessoas estavam aptas a votar nas eleições daquele ano. O número, inegavelmente bastante significativo, deixa de fora uma parcela importante da população que vive no Brasil: pessoas migrantes e refugiadas.

De acordo com Art. 14 da Constituição Federal brasileira, estrangeiros não podem participar de votações no Brasil. O direito ao voto é reservado a brasileiros natos ou pessoas naturalizadas.

Essa tem sido uma pauta e reivindicação constante nas etapas estaduais da COMIGRAR, a Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. A fase que antecede a etapa nacional – a ser realizada nos dias 7 a 9 de junho em Foz do Iguaçu – tem acontecido desde janeiro deste ano, como conta Miguel Pachioni, oficial de comunicação do ACNUR – Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados, organização que tem acompanhado as etapas estaduais da conferência.

Miguel explica que as conferências têm promovido grande foco na escuta de demandas das pessoas migrantes e refugiadas. Para ele, uma vez que o voto é um processo de uma sociedade plural, ele deve, justamente, contemplar a pluralidade da população.

“Inserir e contemplar as pessoas refugiadas nos debates públicos é um meio muito eloquente de fazer com que a sociedade seja não apenas mais plural, mas também de que essas pessoas possam agregar olhares. As políticas voltadas para essas populações não são restritas a elas, e sim o que se tem são ganhos sociais amplos e diversos relacionados com os ganhos advindos e voltados para a população refugiada e migrante como um todo”, analisa Miguel.

A ideia é que, com a participação política assegurada, as pessoas migrantes possam agregar na formulação de políticas públicas de acordo com suas principais necessidades e demandas.

A Revista Casa Comum conversou com duas pessoas estrangeiras residentes no Brasil por diferentes motivos, com o objetivo de entender como se dá sua participação política em solo brasileiro. Conheça suas histórias.

Ativismo e militância mesmo distante

Depois da Argélia, a República Democrática do Congo (RDC) é o maior país do continente africano. O que não é de conhecimento geral é o conflito sangrento que assola o país, local de nascença de Prosper Dinganga Sikabaka, de 39 anos, atual técnico de regularização migratória no Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI) Oriana Jara, uma iniciativa do Sefras – Ação Social Franciscana que realiza atendimentos locais e itinerantes para a promoção dos direitos dos imigrantes no Brasil.


Prosper chegou ao Brasil em 2013, sozinho, e trouxe na bagagem sua formação em relações internacionais e seu perfil ativista de direitos humanos. Ele integra a campanha Geno-Cost, uma iniciativa global da Plataforma de Ação Jovem Congolesa (da sigla em inglês CAYP – Congolese Action Youth Platform) que tem como objetivo reconhecer o genocídio da população da RDC. A origem do nome do movimento é uma combinação entre as palavras genocídio e custo, pontuando que a perda de vidas humanas em razão do conflito tem uma raiz e motivação econômica.

“Nós calculamos uma estimativa de 12 milhões de vidas perdidas desde quando o conflito começou, há três décadas. O conflito no Congo é extremamente silencioso, quase ninguém conhece, porque há um vínculo econômico, com a exploração de minerais estratégicos presentes em produtos na indústria de tecnologia, como celulares, notebooks e televisores. A demanda da sociedade [por esses produtos e pelos minérios] acaba alimentando o conflito. O nosso trabalho é divulgar, falar mais e fazer mais barulho para cobrar as instituições internacionais.”

Como uma extensão dessa campanha, Prosper comanda, no Brasil, um projeto próprio, intitulado A Voz do Congo, para chamar a atenção para o conflito em seu país de origem, com todas as ações documentadas em suas redes sociais (@prosperdinganga01).

(Re)construindo redes

Provando que o grupo de pessoas migrantes tem uma enorme diversidade em si mesmo, Thibault Jacquemin tem outra experiência enquanto residente no Brasil. O francês de 33 anos decidiu mudar de país depois de conhecer a esposa, brasileira, na Europa, e conseguiu a permanência no país a partir do casamento.

Formado em engenharia biomecânica na França, Thibault conta que, mesmo depois de

cinco anos como residente no Brasil, ainda não tem um diploma universitário, uma vez que poucas universidades no país fariam a revalidação de seu diploma, que é de curso muito específico, além dos altos custos e da longa fila de espera para tal.

Com uma atuação forte e participante de mobilizações políticas na França, Thibault contava com uma rede organizada de contatos em seu país de origem, e precisou reconstruir tudo ao chegar ao Brasil.

Passou um período no qual se dedicou a uma atuação individual: caminhava, fotografafa e conversava com moradores em situação de rua. Em seguida, teve duas ocupações muito ligadas ao meio social: dividia uma casa e cuidava de pessoas com deficiência vindas de comunidades e situações de alta vulnerabilidade social, e também foi educador de arte no CCA (Centro para Crianças e Adolescentes, serviço oferecido pela prefeitura).

“Mudei bastante de ramo. Na França, estava no lado contra-institucional, vamos dizer, como parte de uma rede de críticas às instituições. Quando comecei a reconstruir minha rede aqui no Brasil, me institucionalizei bastante. Passei de um trabalho mais crítico, mas que ainda acho muito necessário, para um trabalho mais concreto dentro das instituições.”

Hoje, Thibault é educador social no Centro de Acolhida ao Imigrante – Casa de Assis, iniciativa do Sefras que acolhe 110 refugiados e solicitantes de refúgio e dispõe de alimentação, acomodação e atendimento psicológico, social e jurídico.

Atuação política: um desafio burocrático

Naturalizado brasileiro desde 2018, Prosper já participou de algumas eleições. Ele argumenta que, enquanto pessoas que pagam impostos e contribuem igualmente na construção e desenvolvimento do país, é imprescindível que estrangeiros também tenham o direito ao voto assegurado, inclusive com seu lado político e ativista acolhido e abraçado.

“Eu sou muito contra que migrantes mostrem somente o lado cultural. Aqui no Brasil funciona muito desse jeito; a maioria das pessoas só quer ver esse lado meio folclórico, e às vezes não vê outras potências que possam surgir a partir dos migrantes. Há movimentos políticos, individuais ou coletivos, pessoas com perfil político. Existe uma grande diversidade dentro da própria migração.”

Thibault, por sua vez, não é naturalizado, o que significa que, nesses cinco anos como residente do Brasil, não pôde participar das eleições, o que descreve como frustrante. “Não poder ter voz nesse momento foi complicado.”

Entretanto, ele conta que a atuação política vai muito além do voto. A própria escolha profissional, é um exemplo. “Para mim é uma forma de militância decidir que vou trabalhar em um centro de acolhida para imigrantes, porque vou desenvolver mais o aspecto humanitário de apoio a outras pessoas do que optar por ser vendedor de uma mercadoria capitalista”, exemplifica.

Além disso, pontua e reforça a importância de ações cotidianas que, segundo ele, fazem a diferença. A fiscalização da linguagem, por exemplo, evitando que termos preconceituosos ou com vieses negativos sejam disseminados, é um trabalho contínuo de educação que pode mudar sociedades politicamente.

Engajamento e ativismo como porta de entrada

Além de sua formação em relações internacionais na RD do Congo, Prosper é, atualmente, estudante de direito. A presença na universidade, bem como seu perfil ativista e seu histórico de pessoa estrangeira no Brasil dão uma visão crítica sobre a recepção de migrantes. Ele analisa que, ao adicionar um viés político à questão, são formados grupos bem divididos: o da extrema-direita, que é majoritariamente contra a questão migratória; e de outras linhas políticas, onde pelo menos há um debate sobre o tema.

Além disso, Prosper comenta que grupos de migrantes que decidem se estabelecer no país desenvolvem um desejo de participar na vida política da sociedade no qual estão inseridos. Ele relembra a história de uma colega peruana que se inseriu na vida política no Brasil a partir da participação em um grupo feminista de ativismo pela defesa de um parque no bairro que ela mora.

“É assim que a participação política começa. Mesmo incomodando, o migrante vai participar, porque ele sabe que é a sua filha ou filho, que, inclusive, nasceu no Brasil, que vai precisar daquele parque, por exemplo. Então ele precisa estar lá e ser a voz dessa criança. Isso vai levando ao engajamento dessa pessoa migrante que está estabelecida no país a poder ter um papel político muito mais contundente, mais presente.”

Processo de recepção e acolhimento

Todos os dias, milhares de pessoas ao redor do mundo abandonam sua casa, comunidade, cidade e país sem olhar para trás e recomeçar em um local onde até mesmo o idioma é desconhecido. Entre as motivações, há uma gama de fatores: desde conflitos armados e guerras, perseguições de indivíduos ou grupos específicos em razão de raça, religião, nacionalidade e/ou posição política, os efeitos e consequências das mudanças climáticas e muitas outras.

Ao recepcionar essas pessoas, Miguel, do ACNUR, aponta que, antes de mais nada, é necessário considerar que não se trata de um grupo homogêneo, de um único perfil, mas que envolve personalidades múltiplas em suas origens, formações e modos de vida: pessoas indígenas, idosos, crianças, LGBTQIAP+, população acadêmica, entre outros perfis, com demandas próprias e distintas entre si.

Além de uma política nacional voltada a essa questão – que está em fase de discussão no âmbito da II COMIGRAR -, se faz necessária uma articulação e interlocução claras entre diferentes atores e entes públicos que lidam com a temática, conectando os esforços federais, estaduais e municipais.

Preencher temporariamente as lacunas existentes, além de promover conhecimentos, facilitar a empregabilidade e absorver mão de obra qualificada também são papéis importantes que devem ser assumidos, respectivamente, pela sociedade civil e empresas. Por sua vez, a academia deve fazer com que haja mecanismos claros para que essa população possa continuar seus estudos.

“Essa maior coordenação entre os entes leva a perspectiva da responsabilidade compartilhada, de que cada ente público ou privado pode olhar para o seu campo de atuação e saber como melhor absorver as pessoas refugiadas que vem ao Brasil em busca de proteção e de condições dignas de vida, e, assim, propiciar mecanismos a partir dos quais elas possam se desenvolver e, obviamente, contribuir para o desenvolvimento local”, reforça Miguel.

Sucessão de barreiras e desafios para estrangeiros

Muito comunicativo, Prosper conta que a questão linguística foi um dos principais e maiores desafios do período quando mudou de um país francófono – que fala francês -, para o lusófono Brasil. Autodidata, o congolês – que fala francês, inglês, espanhol e quatro línguas africanas – conta que passou horas e horas dedicado a aprender a língua local.

De fato, o idioma é uma das três principais barreiras para estrangeiros que chegam ao país, segundo Miguel.

“Não temos nenhum país vizinho que fale português. Então, essa é uma barreira bastante específica do Brasil, considerando que isso não acontece, por exemplo, aos venezuelanos que vão para o Peru, Colômbia e outros países. Ser compreendido e se fazer compreensível é um desafio no nosso país, e isso faz com que haja um entrave também ao processo de integração local, que requer um tempo a mais”, afirma.

Outra grande questão, intrinsecamente conectada ao desafio do idioma, é o próprio acesso à informação. Miguel explica que, ao mesmo tempo em que pode haver dissonâncias entre o que está descrito enquanto direitos de pessoas migrantes com o que de fato é compreendido por essas pessoas, muitas delas chegam sem uma noção clara sobre os modos de vida, a cultura local e o apoio existente por parte das diferentes instâncias governamentais (federal, estadual e municipal).

Por fim, outro elemento, este de médio a longo prazo, que dificulta o estabelecimento de pessoas migrantes no país é a geração de renda.

Já Prosper comenta sobre o peso da questão documental para que pessoas migrantes e refugiadas possam ter acesso a outros direitos e, de fato, se inserirem na sociedade. “Tudo está vinculado à questão documental, até a moradia. Existe uma discriminação do migrante enquanto ele não tiver o papel que identifique que vive da forma regular no país”, explica, reforçando que apesar de muitas pessoas usarem o termo ‘ilegal’ para se referir a migrantes, o correto é falar em situações ‘regulares’ ou ‘irregulares’.


Refúgio em números


Somente em 2022, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informou que o Brasil reconheceu 5.795 pessoas como refugiadas no país, totalizando 65.840 pessoas nessa condição em território nacional, com a maioria das solicitações vindas da Venezuela e de Cuba, segundo o relatório Refúgio em Números 2023 (link), uma iniciativa do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).


O levantamento aponta que, entre os principais países de nacionalidade ou residência habitual das pessoas reconhecidas, no período 2011-2022, destacaram-se os venezuelanos (53.303), os sírios (3.762), além das pessoas refugiadas com origem na República Democrática do Congo (1.113) e em Cuba (1.033).


Migrantes e o atendimento em serviços públicos

A formação e instrução de agentes públicos que atuam diretamente com esse público, como funcionários do setor da saúde, por exemplo, também é um fator prioritário na recepção de migrantes e refugiados segundo Miguel, perspectiva trabalhada pelo ACNUR no sentido de prover informações de qualidade.


“É fazer com que pessoas que estejam no atendimento do SUS [Sistema Único de Saúde], por exemplo, possam compreender a realidade das pessoas refugiadas e buscar meios de que, considerando a barreira linguística, possa haver outros mecanismos de facilitar o atendimento em saúde em questões emergenciais.” Clique aqui e leia outras reportagens especiais da Revista Casa Comum Clique aqui e saiba mais sobre a iniciativa

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