No último dia 28 de abril foi lançada a Frente Nacional Contra a Fome – FNCF, Fórum Social das Resistências (FSR), no Rio Grande do Sul. A Frente, formada por movimentos, organizações e articulações sociais brasileiras, busca “colocar a fome num museu”, como cunha a expressão do compositor Emicida. Seu objetivo é criar uma agenda coletiva e incidências políticas para o combate à fome no Brasil, enfrentando a fome em suas dimensões estruturais e emergenciais, por meio da educação, formação, mobilização e organização popular.
O lançamento contou com ampla presença dos movimentos sociais e organizações ligadas ao tema, participação de lideranças religiosas, lideranças nacionais e do Estado do Rio Grande do Sul, como exemplo do ex-ministro do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Miguel Rossetto.
A fome é o prato principal de milhões de pessoas no Brasil
O cenário de crescimento da fome no Brasil já era visível e presente na realidade dos brasileiros antes mesmo do advento da pandemia de COVID-19. A flexibilização e depreciação de direitos sociais, sistemático enfraquecimento do Estado e corte das políticas públicas e programas voltados para diminuição das desigualdades, já vinham contribuindo para agravar o contexto da fome brasileiro. A chegada do novo coronavírus serviu para agravar e potencializar um quadro que há anos já estava sendo pintado.
De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), divulgado em 2021, cerca de 55,2% dos lares brasileiros vivenciavam um cenário de insegurança alimentar, um aumento de 54% em relação a 2018, quando esse percentual era de 36,7%. São 116,8 milhões de brasileiros sem acesso pleno e permanente à comida. Ainda, cerca de 19 milhões de brasileiros se encontram em situação de insegurança alimentar grave.
Durante a pandemia de COVID-19, a insegurança alimentar grave aumentou exponencialmente, chegando a patamares perigosamente altos. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos, “2,4 bilhões de pessoas” no mundo não têm acesso à alimentação adequada (report de agosto 2021). Antes eram 320 milhões de pessoas.
Para as organizações que compõem a Frente, essa realidade é resultado de um modelo econômico que coloca o lucro acima da vida dos seres humanos e do próprio planeta. Enxergam que a realidade da situação de fome do povo brasileiro contrasta com a realidade do agronegócio, que permanece batendo recordes financeiros e de produção, em constante crescimento.
Este cenário reflete uma dimensão conjuntural histórica do Brasil. O processo de formação social e econômica do nacional consolidou, por meio da violência contra os povos, uma estrutura agrária que prioriza o monocultivo, a concentração, a desigualdade e a destruição do meio ambiente, em detrimento de um modelo de agricultura centrado na produção de alimentos, na reforma agrária e na soberania alimentar.
Para a Frente, a fome é o prato principal de milhões de pessoas no Brasil. Isso devido não apenas ao contexto atual em que vivemos, mas também devido aos interesses políticos. Pois, nesse contexto, ainda há o papel omissivo do Estado, que promove o enfraquecimento da democracia e os interesses corporativos em detrimento da vida. Assim, encontramos em um cenário de aprofundamento de violações sistemáticas dos direitos humanos e ambientais, a superexploração do trabalho e a perda de direitos trabalhistas e sociais, crescente omissão do papel do Estado na promoção de políticas públicas de bem estar social, aliança entre governo.
A Frente Nacional Contra a Fome
Para enfrentar tal cenário, surge o chamamento franciscano para construção de uma Frente Nacional Contra a Fome. A inspiração original veio com a Carta do Papa Francisco aos movimentos populares, na qual afirma confiança de que a transformação social apenas virá com a participação dos Povos através dos Movimentos Populares. O Papa Francisco ainda exalta a construção destes na capacidade de representar o todo: “Vocês são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho. Espero que esse momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros desmedidos para poucos, precisa mudar, se repensar, se regenerar”.
Em 2020, em meio a crise sanitária de COVID-19 e do desmonte do Estado brasileiro, o SEFRAS – Ação Social Franciscana publicou o relatório “A Fome como prato principal”, no qual ações concretas, destacadas por Frei Betto, são postas como centrais para a agenda de enfrentamento da fome, dentre elas a participação e mobilização social por meio de uma Frente Nacional de Erradicação da Fome. Após 2 anos, tal ambição foi finalmente concretizada em parceria às demais organizações e movimentos sociais que também ouviram ao chamado franciscano. Como posto na Carta do Papa Francisco, “Se a luta contra o COVID-19 é uma guerra, os movimentos são um verdadeiro exército invisível que luta nas trincheiras mais perigosas. Um exército sem outra arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade que reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozinho. Vocês são para mim, verdadeiros poetas sociais, que desde as periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais prementes dos excluídos”.
Assim, os franciscanos possuem uma posição protagonista na convocação para a Frente, e assumem um papel de ser facilitador e canal de diálogo para fortalecer o papel da sociedade civil, dos movimentos sociais e organizações que empenham esforços na busca por uma transformação em benefício do Povo.
A FNCF surge, enfim, com a proposta de estabelecer um projeto popular para o Brasil, baseado na democracia, sustentabilidade, desenvolvimento, soberania, solidariedade, feminismo e igualdade étino-racial. Para eles, é a partir desses princípios que será possível alimentar tanto a cidade quanto o campo, enfrentando a fome por meio de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Ainda, defendem que a produção de alimentos deve ser ao abastecimento do povo brasileiro, e não do mercado externo.
Para tal, a Frente nasce com uma estrutura composta por: uma Secretaria Executiva que será responsável por secretariar os processos organizativos, programáticos e metodológicos da Frente em seus diversos níveis de trabalho; Comitê Gestor, núcleo dirigente, responsável por planejar, coordenar, animar e articular os processos e o direcionamento estratégico da Frente. É formado por representantes de organizações membros; Plenária Nacional, espaço amplo para acolher, escutar, mobilizar, animar, informar, compartilhar as redes, organizações, movimentos e iniciativas que compõem a Frente, alinhando agendas, socializando fazeres e convergindo ações; e Grupos de Trabalho, grupo de pessoas vinculadas a organizações membros da Frente, cujo plano de ação tem como base os objetivos da Frente. Cada um dos cinco grupos possui um coordenador membro do Comitê Gestor.
Os Grupos de Trabalho estão divididos entre: Incidência Política, articular politicamente no âmbito popular e institucional, com objetivo de fortalecer propostas de políticas públicas e incidências locais de organizações diante do enfrentamento e combate à fome; Articulação Territorial, promover articulação política e territorial de grupos, iniciativas e comitês locais para viabilizar a produção, o escoamento e o acesso a comida na perspectiva da organização popular; Formação, desenvolver processos formativos de educação popular a partir de experiências concretas de organização, com produção de conhecimento na forma de sistematização das experiências e desenvolvimento de pesquisas do trabalho e envolvimento com o povo; Comunicação, colocar em evidência a agenda da fome e as propostas de enfrentamento pactuadas pela Frente.
Deste modo, visam alcançar o fortalecimento de uma agenda de defesa das políticas de emergências alimentares, estabelecendo um novo pacto civilizatório de solidariedade por meio da promoção de reflexões-ações e pela construção da transformação social de baixo para cima, colocando as pessoas que passam fome como protagonistas nesse processo.
De acordo com Fábio Paes, coordenador de advocacy do SEFRAS, “a Fome é um projeto político e econômico que exclui, desnutre e mata populações. Se a fome é uma forma organizada de exploração, temos que nos organizar para outro projeto de sociedade e de país. Um projeto para todos, com uma economia que tenha como centro a dignidade humana e a organização e produção popular. Eis o desafio para o surgimento da Frente Nacional Contra a Fome”.
É diante desse contexto geral que surge a Frente Contra a Fome em meio à crise emergencial da pandemia com perspectiva de enfrentamento estrutural da fome, nas mais complexas dimensões que a conforma. Busca fazer frente ao desmonte das políticas públicas de segurança alimentar, fazer frente a uma cultura pautada em um sistema político, econômico, social e ambiental que leva à exclusão de pessoas, tal como a mercantilização da vida. Em busca de uma nova forma de trazer respostas, aponta para soluções da base, servindo como espaço de articulação, mobilização, educação e organização popular que, ao mesmo tempo, promove iniciativas de pessoas, movimentos, instituições, associações, instâncias da tomada de poder e gestão pública em prol de uma nova forma de ser e agir contra a fome.
Para assistir ao lançamento da Frente, acesse o link: https://www.facebook.com/watch/live/?extid=NS-UNK-UNK-UNK-IOS_GK0T-GK1C&ref=watch_permalink&v=405656021066957
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